"Nas crises, o azar de uns é a sorte dos outros"

Na próxima quarta-feira, dia 6 de maio, o Palácio do Correio Velho leiloa o espólio de Luiz Miguel Roza Dias – além de cirurgião vascular, sobrinho, herdeiro e estudioso de Fernando Pessoa. O responsável da leiloeira Sebastião Pinto Ribeiro explica-nos em que moldes decorrerá a sessão e como vê o futuro do mercado das artes e antiguidades.

Como é que a paralisação provocada pela pandemia está a afetar-vos e o que estão a fazer para minimizar os estragos?

A primeira coisa foi defender os trabalhadores e as pessoas de uma possível infeção. Fechámos a empresa totalmente durante três semanas à espera de alguma orientação do Governo, não tanto a nível do que ia acontecer nas artes ou nos leilões mas, sobretudo, a nível empresarial e de proteção pública. Cancelámos o leilão presencial que estava agendado para 18 de março – ainda por cima era com o espólio de um familiar de Fernando Pessoa. Tínhamos a exposição marcada, normalmente passam por aqui duas a três mil pessoas e não queríamos correr esse risco. Por isso, adiámos para 6 de maio. Depois, assim que as medidas do estado de emergência saíram cá para fora, usámos os mecanismos disponíveis para começarmos a reorganizar a nossa atividade.

Em que é que isso se traduz?

O Palácio de Correio Velho já tinha, desde 2014, uma plataforma de leilões online que estava preparada para começar a funcionar. Aquilo que fizemos foi tentar perceber qual seria a melhor altura para começar o negócio digital e reforçar toda essa vertente. Já abrimos e começámos a vender. A partir de agora teremos de nos reinventar um bocadinho, passar a fazer as coisas um bocadinho mais digitais até ser levantado o estado de emergência. Enquanto não pudermos fazer exposições, iremos para o espaço digital.

Esse leilão com objetos de Fernando Pessoa, como vai funcionar?

Vai ser dia 6 de maio, na internet. Desde que mantivemos esse leilão do Fernando Pessoa no arco, as pessoas têm deixado ofertas e tem havido imenso interesse. As pessoas não podem vir aqui, mas podem entrar ao vivo nas plataformas digitais e ver o leilão a acontecer. Já fizemos um leilão ao vivo e correu lindamente, tivemos imensas licitações.

Esse primeiro leilão também serviu de barómetro para perceber se as pessoas aderiam?

Acho que as pessoas não deixaram de ter interesse nas antiguidades – em princípio, isso nunca deixará de acontecer. Isto é cíclico. Em todas as crises há sempre pessoas que deixam de ter poder de compra e outros passam a ter poder de compra. Isto é uma espécie de bolsa de valores: às vezes, o infortúnio de uns é a sorte dos outros. Por outro lado, acabam por aparecer coisas para vender que normalmente não viriam ao mercado se não fosse a crise. Normalmente, até, nas crises é quando aparecem coisas boas para vender, e depois, dependendo do valor das coisas, há sempre gente para comprar. Mas veremos como reage o público. Também é uma mudança um bocadinho drástica, não é?

Têm material em armazém com que possam alimentar leilões futuros antes de poderem retomar as visitas?

Temos, mas não é eterno. Temos stock para algum tempo, não para cinco anos de leilões. Para podermos continuar a nossa atividade teremos de ir a casa das pessoas fazer avaliações e fazer aquilo a que se chama ‘angariar leilões’. A nossa empresa tentou preparar-se, adquirir máscaras, luvas, viseiras para, quando regressarmos em força a seguir ao estado de emergência, podermos ir a casa das pessoas avaliar os bens e fazermos essa deslocação em segurança.

Falou-me da digitalização e na aposta na vertente tecnológica, mas este não é um negócio conservador, por assim dizer?

É um negócio muito específico. Por muito digital que o mundo seja – as pessoas, hoje, tentam ter os negócios supertecnológicos –, carece sempre de uma intervenção humana, porque estamos a lidar com obras de arte, peças raras ou mesmo únicas, muitas vezes com 300, 400 anos, que carecem de uma avaliação que é sensível ao toque, ao olhar, às dimensões. Infelizmente – ou felizmente –, há certas coisas que não são só tecnológicas. Este negócio é ainda muito dependente do ser humano e acho que vai ser sempre assim. Se reparar, existem há 300 e tal anos duas concorrentes mundiais, a Sotheby’s e a Christie’s. Já houve várias empresas que tentaram rivalizar com elas, querem crescer e não conseguem, porque essas duas são únicas. Aqueles peritos têm um know-how de 300 e tal anos de história por trás. Está a ver – vou usar uma expressão inglesa – como o negócio é tão narrow, tão fino.

Falava-me das peças raras que vão aparecer. Mas também vamos assistir a um abaixamento dos preços, ou não?

Isso era uma situação que já vinha a verificar-se em Portugal há bastante tempo. O que aconteceu na crise de 2008-2010 foi um dizimar da classe média portuguesa e, quando há um empobrecimento generalizado da classe média, os bens têm de perder força. Pode haver a classe alta, que tem dinheiro, e os ricos, mas os ricos não passam a vida a comprar arte. Podem gostar muito, comprar de vez em quando, mas não são eles com certeza que vão sustentar o mercado da arte. Tem de ser a classe média a contribuir em massa para a valorização global. A arte já vinha a perder valor há muito tempo. Pior do que isto, só mesmo não comprarem. Mas não me parece que isso vá acontecer.

Há certas áreas que são mais vulneráveis e outras mais resistentes?

Há aquela expressão engraçada – que é mundial, não é só portuguesa –, ‘vão-se os anéis, ficam os dedos’. Em 2008-10, na crise do subprime, vimos que as lojas de ouro e dos penhores pareciam pipocas, abriam em cada esquina de Lisboa. Como foi uma crise bancária e as poupanças desapareceram das contas, as pessoas tiveram de ir aos tais anéis para poderem pagar a vida no dia-a-dia. Estes bens móveis servem muitas vezes para financiar estas crises. As pessoas têm obras de arte porque admiram, colecionam, gostam para decorar as casas. Mas primeiro têm de ter dinheiro para comer e para estar bem. Quando acontece uma crise destas, e se é preciso liquidez, estes bens são a primeira coisa de que as pessoas se veem livres. Aquelas pessoas que estão muitos anos a guardar coisas raras, e agora estão apertadas, equacionam vender. E quem tem dinheiro, mesmo que não esteja à procura, se apanha uma coisa rara, compra.

Podemos partir do princípio de que será uma altura boa para comprar?

É o que nós achamos. Acho que vai ser duro, mas ainda não vislumbramos bem o que vai acontecer. Pode ser mau, pode ser muito mau, pode ser péssimo, pode ser horroroso. Mas, normalmente, nas crises é isto que a experiência nesta área me diz: o azar de uns é a sorte dos outros. Uns estão a perder o emprego e em empresas falidas, outros estão a fazer dinheiro com máscaras, com álcool-gel, etc. Isto é assim um bocado estranho.

Em 2008-10 foram dos que fizeram dinheiro ou ressentiram-se?

Digamos que o melhor período de venda da última década foram aqueles anos imediatamente a seguir à crise, até 2015. Foi aquele reflexo de as pessoas terem de vender os anéis para fazerem face à crise e acabámos por ter muito produto para vender. Depois, o mercado imobiliário começou a pegar, começou a ser uma solução muito melhor em Portugal, a ter muito mais investimento, e este mercado das artes desceu francamente. As pessoas não fazem esta ligação, mas os dois andam de mão dada. Em 2008-2010 não se vendia uma casa. Você podia pôr um anúncio, estava cinco anos à espera, faziam umas visitas, espremiam valores para metade do que você pedia, e lá vendia uma casa de vez em quando, com muito esforço. As pessoas precisavam de liquidez e recorriam aos bens que tinham em casa, às pratas, à arte, etc. Imagine que cinco anos antes pedia 500 mil euros pela casa, não lhe davam; agora põe no mercado por 700 ou 800 mil e pagam-lhe três dias depois de fechar o negócio. Não precisa de vender o recheio. Como, ainda por cima, tem de reinvestir as mais-valias noutra casa, leva o recheio para outra casa, está ótimo.

É sabido que as gerações mais novas se interessam pouco por antiguidades. Isso é um problema para as leiloeiras?

Entre estes chamados millennials – e até já há outros nomes para os que vêm a seguir –, a tendência é para estarem um bocadinho desapegados de coisas, não tem de ser só obras de arte. Quando eu estava a crescer, aquilo que estava na cabeça da minha avó era fazer um enxoval para as minhas irmãs. Hoje em dia seria impensável a minha mãe fazer um enxoval para as netas. Jamais! O meu pai ofereceu um carro a cada filho. Os meus filhos, provavelmente, nem vão querer ter um carro. Os millennials ainda não descobriram muito bem qual é a relação que querem ter com a arte. Sabem o que não querem: não querem ter coisas pesadonas, grandes casarões, porque isso implica grandes obrigações, estar no mesmo sítio, contas para pagar, etc., e eles gostam de ser livres. Vivemos mundos novos, ainda estamos um bocado à descoberta. Mas, de repente, isto dá uma grande cambalhota e o antigo é que é porreiro! [risos] Nunca se sabe!

‘No mundo das artes há gostos para tudo’

Estudou e trabalhou em Londres, onde viveu 11 anos. Regressou a Portugal «nos ‘maravilhosos’ anos da crise’». Filho do fundador do Palácio do Correio Velho, João Pinto Ribeiro, aos 40 anos, Sebastião Pinto Ribeiro preside à APLART, a Associação das Leiloeiras de Arte, é professor de uma pós-graduação em mercados de arte na Universidade Nova de Lisboa e CFO da empresa familiar. Cresceu rodeado de arte e antiguidades, trabalhou no negócio do pai durante a adolescência e estudou em Londres.

Adquiriu o gosto pelas antiguidades logo em pequeno?

Sempre vivi e cresci rodeado de antiguidades e arte. Para mim, é perfeitamente normal estar rodeado de coisas antigas, coisas modernas, coisas esquisitas… O meu pai era antiquário quando eu nasci, fundou a empresa em 89. Eu nasci em 79, portanto vi todo o crescimento da empresa.

Como foi o seu percurso, como aprendeu os segredos do negócio?

Passei aqui a minha infância, mais tarde fui trabalhando aqui, quando era estudante. Depois fui para Inglaterra fazer um bacharelato, um curso de três anos na Sotheby’s. Ao fim dos três anos vim trabalhar na empresa do meu pai mas, depois, quis voltar para Inglaterra para fazer um MBA. Andei mais seis ou sete anos na banca e isso, alarguei um bocadinho o meu percurso a outras experiências que achei que eram importantes antes de vir outra vez para o mercado nacional e tomar conta do negócio da família. Depois, em 2010, nesses ‘maravilhosos’ anos, retornei a Portugal, ao fim de 11 anos a viver em Londres, para me agarrar ao negócio de família. Uma das coisas que fizemos foi desenvolver os leilões online, em 2014. Desde então sou CFO, o meu pai é o CEO, e juntos temos mantido a empresa.

Tendo o gosto pelas antiguidades, não há a tentação de ir ficando com peças para si?

Desde 2015, isso é proibido por lei, não podemos comprar ou vender na nossa leiloeira, portanto está fora de questão. Mas a tentação existe sempre. É como o dono da loja de gelados: também gosta de gelados mas, se comer todos os dias, ou vai morrer de um problema de açúcar ou vai-se fartar. É como tudo: tem de se gerir os recursos. Eu gosto de pintura contemporânea, de peças de design. Até 2015, se visse num leilão uma obra de que gostasse, provavelmente até podia comprar. Atualmente, a lei não nos permite.

Qual foi a lição mais importante que o seu pai lhe transmitiu?

Tantas na vida… Mas, no mundo das artes, é que há gostos para tudo. Porque às vezes não entendemos o que estamos a ver e podemos desvalorizar. Mas vem sempre alguém que valoriza e é comprador daquilo. Nunca podemos desvalorizar qualquer tipo de coisa que temos à frente.

Não se pode deixar que o gosto interfira com o negócio?

Às vezes entramos em sítios onde não nos identificamos nada com o gosto da casa ou do recheio, podemos ter uma reação negativa. Na realidade, aquilo pode ter até bastante valor e ser um bom negócio. Por vezes tem muito valor e há imensos colecionadores para aquilo, embora não me diga nada. Essa foi uma das coisas que tenho aprendido ao longo da vida.

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