"Espólio de Alberto Monsaraz vai a leilão. Inclui correspondência com Charles Maurras, Santa Rita Pintor e Paiva Couceiro"

Correspondência, documentos pessoais, cartões, jornais e livros da biblioteca do Conde de Monsaraz fazem parte de um leilão online que decorre até dia 7 no Palácio do Correio Velho. Ligações a movimentos nacionalistas europeus, correspondência com a oposição monárquica durante a Primeira República, a génese do Integralismo Lusitano e do movimento Nacional Sindicalista, mas também relações com intelectuais e artistas daquele tempo, entre os quais o pintor Santa Rita, passam entre os lotes a leiloar

Importante voz da oposição monárquica ao regime republicano, mais tarde opositor também de Salazar, figura ligada ao Integralismo Lusitano, Alberto de Monsaraz (1889-1959), segundo Conde de Monsaraz, tem correspondência, outros documentos escritos, cartões de visita, poemas, algumas fotografias e desenhos, jornais e volumes da sua biblioteca pessoal integrados num leilão de 280 lotes que decorre online até dia 7 no Palácio do Correio Velho.

Entre os lotes encontramos correspondência com grandes vultos da política do seu tempo, entre eles Rolão Preto, Almeida Braga, Pequito Rebelo, António Sardinha ou Hipólito Raposo, nomes destacados do Integralismo Lusitano, o primeiro dos quais o fundador em 1933 do movimento Nacional-Sindicalista, espaço político de extrema-direita que operou nos primeiros anos do Estado Novo. A génese de um pensamento mais próximo do fascismo italiano ganha aqui forma num lote com um desenho de Abel Manta que representa o rosto de Homem Christo Filho e uma fotografia do túmulo deste escritor e jornalista, admirador de vários nacionalismos europeus, amigo de Mussolini e fundador da revista “Ideia Nacional”. O lote 120 envolve uma série de documentos sobre Homem Christo, entre os quais 29 cartas trocadas com Paulo Homem Christo (o seu filho).

Charles Maurras, poeta e o principal ideólogo da Action Française (movimento nacionalista e monárquico fundado em França em 1899), ocupa outro dos lotes a leilão que integra textos traduzidos, um poema que Monsaraz lhe dedicou e uma carta de 1 de janeiro de 1934 composta por “duas folhas dactilografadas, com correções manuscritas” e assinada por Alberto Monsaraz, e que era acompanhada por “dois recortes franceses apensos pequenos”. Esta carta, traduzida para português, seria publicada quatro dias depois no "Diário de Lisboa", sob o título “A Independência de Portugal”.

Um outro dos grandes motivos de interesse do leilão é a troca de correspondência entre Monsaraz e o pintor Santa Rita, cuja pintura “Orfeu dos Infernos” o conde adquiriu por cinco mil escudos. Este valor é recordado no rascunho de uma carta de maio de 1945 que surge no lote 243 e na qual podemos ler: "Tenho tanto desejo de o ver figurar no Museu de Arte Contemporânea que decidi não valorizar nem a raridade, visto o número de obras tão exíguo do pintor, nem a projecção do seu nome no Tempo. Limito-me a não perder.” O quadro, que foi, entretanto, adquirido pelo colecionador Armando Martins, será integrado na exposição permanente de um novo museu (o Museu de Arte Contemporânea Armando Martins), que será instalado em 2021 no Palácio dos Condes da Ribeira Grande (que albergou antigo Liceu Rainha Dona Amélia), na Rua da Junqueira, em Lisboa.

Intelectual, com obra poética de sua autoria, e com uma ação política intensa, Alberto de Monsaraz era filho de António de Macedo Papança, um advogado e também político que o rei D. Carlos elevou a Conde de Monsaraz num decreto de 1890. Homem “muito cordeal”, como o descreve ao Expresso António Valdemar, que o chegou a conhecer, Monsaraz estudou Direito em Coimbra, tendo logo aí militado em movimentos monárquicos e iniciado a colaboração com várias publicações, entre as quais o jornal “Pátria Nova” ou as revistas “A Sátira” ou “Contemporânea”.

Marcou presença na cena política como um dos dirigentes do Integralismo Lusitano, do qual se afastaria em 1925, surgindo mais tarde como um dos rostos proeminentes do movimento Nacional Sindicalista. Entre estes espaços de militância experimentou assim aí dois períodos de oposição distintos, um deles à Primeira República, o outro ao regime que se começou a formar depois de 1926. A oposição a Salazar através do movimento Nacional Sindicalista acabaria por estar na origem de um novo período de exílio de Monsaraz, a partir de 1935, desta vez em Espanha.

Depois da morte do rei D. Manuel II, em 1932 (em Fulwell Park, a residência perto de Londres onde se fixou durante o exílio), e que não deixou descendência, Monsaraz aproximou-se da linha que defendia a pretensão ao trono por D. Duarte de Bragança, neto do rei D. Miguel. O leilão inclui 13 cartas que com ele trocou ao longo dos anos. Uma delas, de 1935, enviava um “relatório sobre a política portuguesa, a instâncias de Pequito Rebelo, afiançando a sua lealdade a Sua Magestade”. Uma outra, de 1950, fala “sobre a revogação da lei do Banimento da família Real”. No lote (80) encontramos também duas cartas de agradecimentos, de 1949, assinadas pelo punho do próprio D. Duarte. Entre os lotes a leilão há, além da correspondência, uma série de documentos relativos à causa monárquica durante o Estado Novo.

Alberto de Monsaraz tinha-se correspondido com o próprio D. Manuel II e com alguns dos seus conselheiros. O lote 280 envolve um total de 19 documentos entre os quais estão uma carta de 1913 na qual o 2º Conde de Monsaraz felicita D. Manuel II pelo seu casamento com a rainha Augusta Vitória. De 1912 data uma outra carta, esta enviada pelo rei, para Alberto Monsaraz, na altura a viver dias de exílio em Paris, na qual escreve; “Com que saudade me lembro dos bons tempos e sobretudo da nossa querida Coimbra! Como tudo passou e mudou, fazendo daquele adorado Portugal, um Paíz de bandidos (...) Haja a esperança perene de melhores dias para a nossa desorientada Pátria.”...

É também significativa a correspondência com Henrique de Paiva Couceiro, importante patente militar na resistência monárquica na revolução de outubro de 1910 e, depois, o comandante das incursões monárquicas de 1911 e 1912, tendo chegado a proclamar a Monarquia do Norte em 1919, que contou com o apoio dos integralistas. Entre as cartas deste lote, muitas de dimensão mais pessoal há uma, de 1912, “enviada do Convento de Verin, Gallega, dirigida Ex. Snra D. Amélia Rojão, Regengos de Monsaraz, de teor monárquico, cifrada, irónica, preparando a segunda incursão monárquica”, como se lê no catálogo do leilão.

Alberto de Monsaraz juntou-se ao movimento gerado pela primeira incursão monárquica em 1911, o que lhe valeu um primeiro período de exílio que partilhou em Paris com outros jovens monárquicos, até que regressou a Portugal em 1914. A sua presença foi mais visível, contudo, por alturas da proclamação da Monarquia do Norte, tendo-se então juntado às forças que se entrincheiraram em Monsanto, onde acabou por ser ferido, tendo ficado desde então com um estilhaço de uma granada alojado no fígado.

Cartas de Júlio Dantas, João de Deus (e filho), Veva de Lima, Rocha Martins, correspondência de âmbito familiar e até mesmo várias cartas do seu pai, o primeiro Conde de Monsaraz, surgem ainda entre os lotes. Há um conjunto de sete documentos (lote 240) de e sobre Salazar, entre os quais uma carta “quando era professor de Direito, lamentando a Alberto Monsaraz que o seu amigo recomendado não estivesse à altura no exame, e um cartão de 1932 cumprimentando e agradecendo o exemplar oferecido” de um livro.

O Expresso contactou a Biblioteca Nacional (BN) para saber do potencial interesse em licitar neste leilão. “Neste momento ainda não podemos dar uma resposta visto que o assunto está a ser analisado”, foi-nos respondido. Adelaide Ginga, diretora do Museu de Arte Contemporânea Armando Martins, referiu por sua vez ao Expresso que este museu “está a considerar” o seu interesse pela eventual aquisição de documentação que se relacione com a obra “Orfeu dos Infernos”, de Santa Rita que durante muitos anos esteve em posse de Alberto de Monsaraz.

João Macdonald, fundador e editor da “Machina” (uma publicação digital sobre o modernismo português), crê que “em relação à história política”, mas ressalvando que não conhece ainda os documentos que estão a leilão, não lhe parece que esteja entre estes lotes “algo que venha alterar radicalmente o conhecimento que temos da história do integralismo lusitano e do monarquismo de que o Monsaraz foi um protagonista”. Já “em relação à história cultural e artística” reconhece ser potencialmente mais importante “por chamar mais a nossa atenção para o papel que ele teve” como “acolhedor da geração modernista, em particular no que respeita à espécie de salon, ao convívio intelectual e artístico, e necessariamente também político, que acontecia na casa dele na Rua Vítor Cordon, um espaço que tem de ser levado em conta para além dos antigos cafés”. E nesse ponto de vista, vinca “o leilão traz ao de cima o papel que Monsaraz teve na vida cultural e artística naquela época. “O facto de ele ter comprado aquela pintura ao Santa Rita faz dele um interessado na promoção disto tudo”, sublinha, notando que o pintor “não precisava de fundos para viver, já que vinha de uma família confortável”. Pelo que nesta aquisição “há um lado de promoção na compra do quadro por alguém como o Monsaraz”, conclui.

O leilão no Palácio do Correio Velho corresponde a uma primeira parte deste acervo. As licitações decorrem online até às 22.00 horas de dia 7 de dezembro.