"A casa de José Hermano Saraiva era quase um museu: o leilão vai começar agora "
Quando morreu, José Hermano Saraiva deixou uma casa recheada com centenas de objetos que foi reunindo com carinho e dedicação ao longo de vários anos. Escultura, pintura, azulejos e até objetos arqueológicos: na sua moradia em Palmela, era possível encontrar um pouco de tudo, incluindo dois capitéis romanos descobertos durante a demolição de um prédio em Lisboa. Depois da morte da sua mulher, Maria de Lourdes de Sá Nogueira, em 2016, os filhos ficaram sem saber o que fazer com os objetos que tinham sido colecionados pelo pai. Como nenhum deles tinha interesse em ficar com o recheio da sua casa, optaram por fazer um leilão. Este, que estará a cargo do Palácio do Correio Velho, em Lisboa, terá início nesta quarta-feira à tarde e decorrerá ao longo de três sessões. Ao todo, serão postos à venda 444 lotes, que reflectem o gosto e os interesses de um dos maiores comunicadores da televisão portuguesa.
João Pinto Ribeiro, diretor-executivo do Palácio do Correio Velho, conheceu a família do historiador no ano passado. José Hermano Saraiva tinha morrido há sete anos e a mulher há um. “Havia a questão de se manter ou não a casa”, explicou ao Observador. Como os cinco filhos do casal — José, António, Pedro, Paulo e Rodrigo — “têm a sua vida”, “resolveram que a solução seria uma venda em leilão”. Esta ficou a cargo de João Pinto Ribeiro e do Palácio do Correio Velho, a quem coube a catalogação das obras de arte e objetos do historiador. O diretor-executivo da leiloeira tinha estado algumas vezes com o professor emas “nunca tinha estado em casa dele”. Ao entrar na moradia, apercebeu-se de imediato “do amor e do gosto” que José Hermano Saraiva tinha por ela. Com o Castelo de Palmela do lado direito e vista para “o vale todo”, o Rio Sado e o mar, “aquela casa” foi construída “à medida dele”.
Antes da catalogação e transporte da coleção para a sede do Palácio do Correio Velho, na Calçada do Combro, onde esteve em exposição no domingo e nesta segunda-feira, todos os cantos da casa de Palmela estavam preenchidos por objetos que José Hermano Saraiva colecionou ao longo dos anos. Nem os dois moinhos que existiam na propriedade escaparam. “Aproveitou-os para construir uma sala de presépios e uma biblioteca, com quatro a cinco mil volumes”, contou João Pinto Ribeiro. Era nessa biblioteca que estudava, preparava as aulas e os programas de televisão que o tornaram conhecido da maioria dos portugueses.
No resto da casa, nos pátios e jardins, o historiador “foi pondo elementos que conseguiu encontrar e que comprou em demolições, que vão desde pedras do Renascimento a colunas dos séculos XVII e XVIII”. Um desses elementos renascentistas é uma fonte D. João V, do século XVIII, avaliada entre 3 mil a 6 mil euros. De um período anterior são uma escultura coimbrã de S. João Baptista e uma pia de água benta manuelina, feita em mármore de Estremoz. As duas peças, datadas do século XVI, estão avaliadas em 800 a 1.600 euros e 600 a 1.200 euros, respetivamente. Valores “conservadores” que pretendem incentivar possíveis interessados a licitar.
Há ainda “uma parte mais de arqueologia, com peças provenientes de demolições”. O “conjunto curioso, que está agarrado à casa”, inclui colunas, arcos e cantarias. Mas a peça mais importante é, talvez, o raro conjunto de dois capitéis romanos, em pedra calcária, da ordem coríntia. Estes foram encontrados em Lisboa depois da demolição de um antigo edifício e, de acordo com o Palácio do Correio Velho, são semelhantes aos do templo romano de Évora e a alguns exemplares que se encontram no Museu de Arqueologia. Possivelmente datados do século I ou II d.C., foram comprados pelo professor há mais de 40 anos e adaptados para servirem de base a uma mesa que tinha na sua casa em Palmela. Ao Observador, João Pinto Ribeiro adiantou que as duas peças foram estudadas por “uma especialista na matéria” e que é possível que pertençam a um antigo edifício romano localizado perto Teatro Romano de Lisboa. Com um valor base de 8 mil a 16 mil euros, o responsável da leiloeira acredita ser possível que o preço de venda ultrapasse em muito a avaliação inicial.
Um colecionador apaixonado
O interior da casa de Palmela foi decorada com azulejos dos séculos XVII ou XVIII, que também serão vendidos neste leilão. Entre estes, encontram-se alguns também do século XX, que José Hermano Saraiva mandou fazer para integrar os outros. A pintura, que foi sendo adquirida pelo professor, é sobretudo religiosa e “está relacionada com a família”, com muitos quadros e esculturas a fazerem alusão à maternidade. Segundo João Pinto Ribeiro, esta escolha temática não se deveu tanto a “uma devoção religiosa”, mas mais o um “significado familiar”. Entre os quadros que pertenciam ao historiador, encontra-se uma pintura da Nossa Senhora com o Menino Jesus, do século XVII, da Escola de Josefa de Óbidos, avaliada entre 2 mil e 4 mil euros.
Do conjunto de escultura, destaca-se uma imagem em madeira do Menino Jesus da autoria de Joaquim José de Barros Laborão, um importante escultor português do século XVIII. “Barros Laborão é muito procurado e é raro aparecer”, frisou o diretor-executivo do Palácio do Correio Velho. “O Museu Nacional de Arte Antiga tem algumas peças.” Outra escultura importante foi a que serviu de capa ao catálogo do leilão. Datada também do século XVIII, a imagem das Santas Mães, Santa Ana e Maria, é “rara e invulgar” e encontra-se particularmente bem conservada. Feita em madeira estofada, dourada e policromada, representa a mãe e avó de Jesus sentadas lado a lado, sobre nuvens e cabeças de anjos.
“Santa Ana, de feições envelhecidas, usa túnica comprida até aos pés, toucado e véu sobre a cabeça e manto pendente sobre os ombros e braços. Segura nas mãos cachos de uvas e frutos. Nossa Senhora usa longos cabelos entrançados caindo sobre as costas. Enverga túnica e manto esvoaçante, profusamente decorados com flores. Segura o Menino Jesus, desnudo, ao seu colo enquanto Este tenta com a Sua mão esquerda alcançar o cacho de uvas da mão da Santa Ana. Toda a composição está assente sobre base de formato arquitectónico, em madeira parcialmente dourada, de fabrico posterior”, descreve o catálogo do leilão. A escultura foi avaliada entre 20 mil a 40 mil euros.
No meio das peças portuguesas, espalhadas por todas as divisões da casa de Palmela, era também possível encontrar alguns objetos que o professor e historiador comprou durante as suas muitas viagens. No escritório, José Hermano Saraiva tinha uma escultura em bronze de um buda, possivelmente da Tailândia. Uma vez que não se trata de uma peça antiga, João Pinto Ribeiro supõe tratar-se de uma recordação. “Como me explicou o Professor Rodrigo”, um dos filhos do historiador, “o pai não estava muito preocupado se as peças eram muito valiosas”. “Foi comprando durante as suas digressões, em antiquários. Ele não costumava ir a leilões. Quando encontrava alguma coisa e achava que estava com um bom preço, comprava. [A coleção dele] tem um bocadinho o gosto do colecionador antigo, como costumo dizer.” Num vídeo de apresentação publicado no site da leiloeira, João Pinto Ribeiro admitiu até que, enquanto o grupo de trabalho do Palácio do Correio Velho ia catalogando a coleção, “se sentia a presença do Senhor Professor José Hermano Saraiva” tal era o ambiente “que se vivia” e a “atmosfera do passado”.
Além de peças decorativas, a coleção inclui ainda um vasto conjunto de mobiliário (armários, mesas, cadeiras, canapés, entre outros) ao estilo de D. José e D. João V, mandado fazer pelo historiador para a casa de Palmela. Há ainda vários serviços de jantar e outras peças de decoração em faiança. “Foi encontrando as peças. Há aquelas pessoas que têm um critério, mas ele não era tanto assim”, frisou o diretor-executivo do Palácio do Correio Velho, acrescentando que o único objeto que José Hermano Saraiva colecionava “mesmo de verdade” eram as figuras de presépio. Em relação a estas, João Pinto Ribeiro admitiu que ainda não se sabe ao certo o que se vai fazer com elas. Já a biblioteca será leiloada mais à frente.
É por esta razão que, quando perguntam a João Pinto Ribeiro se a coleção do historiador deveria ser comprada por um museu, o diretor-executivo do Palácio do Correio Velho responde que “há coisas que poderiam ser compradas por num museu, mas são coisas relativamente normais”. Acima de tudo, as peças tinham importância para o colecionador, que “não se interessava muito se faltava um braço ou uma cabeça [a uma escultura]”. “Era a convivência” e o amor que tinha pela peça “que lhe interessava”.
O leilão dos 444 lotes da coleção José Hermano Saraiva terá início na quarta-feira, pelas 19h30, na sede do Palácio do Correio Velho, na Calçada do Combro. Como se tratam de objetos que pertenceram a “uma figura muito mediática”, a leiloeira espera uma adesão acima do normal. No domingo, a coleção, que esteve em exposição até segunda-feira no Palácio do Correio Velho até segunda, foi visitada por cerca de mil pessoas. “Foi muito mais gente do que é costume”, admitiu João Pinto Ribeiro ao Observador. Muitas delas admitiram que gostavam de ter uma peça que pertenceu ao “senhor Professor” e de ter uma recordação.
Durante as três sessões de leilão, será ainda posta à venda uma parte do acervo do arquiteto português Manuel Ferrão de Oliveira e alguns objetos de diferentes proveniências. Nascido em 1929, Ferrão de Oliveira, um dos responsáveis pela elaboração do Inquérito à Arquitetura Popular em Portugal, contribuiu para a valorização do património cultural português “sem o filtro ideológico do Secretariado Nacional de Informação”, refere o catálogo do leilão. A sua coleção teve início nos anos 60, altura em que recebeu, das mãos da mãe de um amigo de infância, algumas peças de cerâmica de Estremoz da autoria de Ana das Peles, datadas de finais do século XIX, inícios do século XX. A partir daí, continuou a colecionar, reunindo ao longo dos anos uma vasta coleção de faianças portuguesas e também estrangeiras. Entre as peças que serão leiloadas esta semana, incluem-se ainda algumas figuras em pedra, de entre as quais se destaca uma esfera armilar, símbolo real de D. Manuel I, do século XVI. Este leilão, realizado pelo Palácio do Correio Velho, será o primeiro da leiloeira a incluir bonecos de cerâmica de Estremoz desde que estes foram elevados a Património Imaterial da Humanidade em 2017.